Um Papa santo que combateu a fumaça de Satanas


Levará 100 anos para nos recuperarmos dos anos de 1960 e 1970, mas João Paulo II nos pôs novamente no caminho certo. Nós temos memórias curtas; facilmente avaliamos mal nossa história recente. Poucas pessoas, ao que parece — ao menos dentre aquelas que sugerem que os problemas que ainda enfrentamos enquanto Igreja são culpa de João Paulo II —, lembram-se do estado em que se encontrava a Igreja Católica no final do reinado do Papa Paulo VI, durante o qual foram liberadas dentro da Igreja forças de desintegração que quase a levaram à perda total de credibilidade enquanto defensora da ortodoxia cristã básica.

Essa obra da escuridão não foi realizada pelo próprio Concílio, mas, certamente, por alguns daqueles que participaram dele. Com certeza não foi a obra de um papa liberal, como alguns ainda alegam confiantemente: pois se o papa Paulo VI foi um liberal tão convicto, o que dizer da Humanae Vitae? As coisas que aconteceram durante o seu pontificado foram alheias às suas intenções. Numa homilia proferida por ele em 1972, ele disse — algo que hoje ficou famoso — que “acreditava que depois do Concílio chegaria um dia de alegria na história da Igreja. Mas em vez disso chegou uma época nublada e tempestuosa, uma época de escuridão... E como isso aconteceu? Nós lhes confiaremos o pensamento de que fez-se presente um poder, um poder adversário. Chamemo-lo por seu nome: o demônio. É como se a fumaça de Satanás tivesse entrado no templo de Deus por alguma rachadura misteriosa”.

Ele estava falando particularmente sobre a liturgia: mas tão desastroso quanto isso foi o surgimento, em seu pontificado, do assim chamado “magistério alternativo” de Küng, Schillebeeckx e do restante dessa linhagem maligna. Foi uma época de grande destruição; e destruir é sempre mais fácil do que reconstruir. A recuperação dessa destruição que se seguiu ao Concílio levará 100 anos. Mas o papa João Paulo deu início ao combate: ele pôs a barca de Pedro, e com ela a Igreja, firmemente de volta nos eixos. 

Sua maior façanha, como eu já disse, foi o fato dele ter feito mais do que qualquer outro papa do século passado para defender e reafirmar além de qualquer dúvida o caráter estável e objetivo dos ensinamentos católicos. Ele não combateu o magistério alternativo suprimindo indivíduos (embora Küng, por exemplo, tenha perdido sua permissão para ensinar a doutrina católica), mas por meio do ensinamento claro e inequívoco: e, como eu escrevi quando a beatificação foi anunciada, o resultado disso foi que ele possibilitou para milhares de não católicos como eu, cansados das ambiguidades das versões secularizadas do Cristianismo, a retomada da plena comunhão com a Santa Sé.

Se você duvida de mim quando digo que ele possibilitou a muitos que se tornassem católicos, apesar de sua própria percepção dos profundos atrativos da tradição católica, pensem no caso de Malcolm Muggeridge. Em Algo belo para Deus, uma explicação de por que ele resistiu a se tornar um católico, apesar da própria insistência de Madre Teresa, ele chamou a atenção para o fato de que "a Igreja, por razões próprias inescrutáveis, decidiu reformar-se apenas quando a reforma anterior — a de Lutero — já havia finalmente falhado".

"Como não membro, eu não faço nenhum juízo sobre algo que não me diz respeito; mas se eu fosse um membro, então eu seria obrigado a dizer que, em minha opinião, se os homens tivessem de ficar parados nas portas das igrejas com chicotes para afastar os adoradores, ou dentro de ordens religiosas especificamente para desencorajar vocações, ou entre o clero para espalhar o temor e o desalento, eles não poderiam ter esperança de ser tão eficazes na conquista desses objetivos como o são agora as tendências e políticas aparentemente dominantes dentro da Igreja. Ao notarmos isso, seria ilógico tentar ingressar na Igreja, mais particularmente como — se o curso do ecumenismo for seguido plenamente — os eruditos da Igreja da qual eu faço parte nominalmente, como o ex Bispo de Woolwich, por quem eu tenho pouca consideração — para dizê-lo suavemente — no devido tempo ocuparão seu lugar na hierarquia Romana Católica entre os sucessores de São Pedro”, escreveu Muggeridge.

Mas em seguida Karol Wojtyla se tornou Papa. O velho ecumenismo confuso foi calmamente perdendo sua força; as brumas da incerteza se dissiparam, e o Magistério revelou-se ainda firme sobre a rocha de Pedro; e em poucos anos Muggeridge finalmente se tornou um católico. Aconteceu o mesmo com muitos outros, inclusive comigo.

Foi por isso que eu me enchi de alegria com a notícia da beatificação de João Paulo II: por ele  ter restabelecido o simples fato de que a Igreja tem autoridade para declarar a verdade objetiva da doutrina católica (Veritatis Splendor, o Catecismo da Igreja Católica, etcetera), eu fui capaz, ao fim e a cabo, de retornar ao lar, de sair de uma Igreja na qual não havia absolutamente nenhum meio de estabelecer acordo sobre qualquer coisa, uma Igreja  que em verdade não exige de seu clero nada além de uma aceitação formal de suas doutrinas — não como declarações de crenças que devem ser de fato tomadas como verdadeiras, mas como aquilo que a Igreja da Inglaterra chama hipocritamente de “herança da fé”. É por isso que inicialmente fiquei tão deprimido com a hostilidade de alguns, até mesmo dentro da Igreja, em relação ao anúncio da beatificação de domingo. Pensava que já havíamos superado tudo aquilo nos últimos anos do pontificado de João Paulo II.

Lembrem-se simplesmente disto: não se trata apenas do fato dele ter colocado a Igreja novamente nos trilhos: ele mostrou o poder da fé por meio de suas impressionantes façanhas geopolíticas quando finalmente respondeu à desdenhosa pergunta de Stalin: “quantas divisões tem o Papa?” Foi assim que George Weigel resumiu essa parte de sua façanha:

“Em 1978, ninguém esperava que a figura que definiria o último quarto do século vinte seria um padre polonês, um bispo! O Cristianismo acabou sendo uma força de construção do mundo de acordo com os líderes de opinião da época; ele poderia ter resistido como um veículo de piedade pessoal, mas, se assim fosse, a certeza cristã não teria desempenhado nenhum papel na construção do século vinte e um. Ora, ainda nos primeiros meses desde sua eleição, João Paulo II demonstrou a capacidade dramática da certeza cristã em criar uma revolução da consciência que, por sua vez, criou uma nova e poderosa forma de política – a política que possivelmente levou às revoluções de 1989 e à libertação da Europa Central e Oriental.”

Nós sabemos que ele cometeu erros: todos os papas os cometem. Mas de acordo com qualquer avaliação razoável, seus feitos tanto no mundo como na Igreja foram imensamente mais importantes que os seus erros. Quiçá sua grandeza tivesse imperfeições; mas tratava-se de grandeza, ainda assim. 

Porém, como escrevi quando o grande evento de domingo fora anunciado, o papa João Paulo II não está sendo beatificado por sua grandeza, mas por causa de sua santidade heroica. O período de cinco anos de espera para dar início ao processo foi posto de lado em razão do que a Congregação para as Causas dos Santos descreveu como uma “grandiosa fama de santidade” vivida por João Paulo II durante sua vida. E no domingo, essa santidade (incontestável por quem quer que o tenha conhecido, e afirmada mais claramente pelo atual Santo Padre, que o conhecia melhor do que a maioria das pessoas) será tudo aquilo de deveremos nos lembrar.

William Oddie é escritor e locutor, foi editor do jornal britânico Catholic Herald entre 1998 e 2004. 
O artigo foi originalmente publicado no Catholic Herald.
Londres, 28 de abril de 2011.