Pouco antes do meio-dia de 8 de Abril de 2005 aconteceu algo em Roma que não acontecia desde 604, quando fieis presentes na missa de exéquias do Papa Gregório I espontaneamente aclamaram-no magnus, “grande”. Em 2005, embora brados de Magnus ricocheteassem sonoros por toda a Praça de São Pedro, o canto que sobressaía era o de “Santo subito!”.
O povo da Igreja estava então prestando seu julgamento espontanea e inequivocamente: Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, vivera uma vida de virtudes heroicas, que a Igreja deveria reconhecer com uma proclamação imediata de que ele estava entre os santos.
Sabiamente, o Papa Bento XVI não acedeu a esse pedido. Ele, contudo, dispensou o período normal de espera para a introdução de uma nova causa para beatificação e canonização, de modo que o processo de estudo da vida de João Paulo II já poderia começar em 2005. Aquele processo chegou agora à sua conclusão formal com a certificação de uma cura milagrosa pela intercessão do Pontífice e com o anúncio de que sua beatificação será celebrada no Domingo da Divina Misericórdia, 1º de Maio. Assim, o julgamento formal do chefe da Igreja agora acompanha o julgamento espontâneo do povo de Deus de seis anos atrás.
A solicitação pela beatificação e canonização de João Paulo, alojada no Vicariato de Roma, próximo à Basílica de São João de Latrão, recebeu pedidos formais de mais de 120 testemunhas, incluídos aí chefes de estado e líderes políticos assim como clérigos e religiosos. Seus testemunhos escritos ou transcritos enchem dois gordos volumes dos quatro que integram o Positio, o registro oficial da investigação da vida de João Paulo, submetido à Congregação para as Causas dos Santos e ao Papa Bento. (Um oficial familiarizado com o processo disse-me que os testemunhos mais interessantes vinham de leigos. Quando lhe perguntei se ele achava esse dado surpreendente, ele simplesmente sorriu.)
O primeiro volume do Positio é uma mini-biografia de Karol Wojtyla. O quarto volume trata de “questões especiais” e aborda questões levantadas desde que começou a investigação da beatificação em 2005. Entre esses últimos estava a acusação – impressa num obscuro tablóide italiano e possivelmente lançado por gente da antiga Stasi que queria causar confusão – de que o jovem Wojtyla teria se involvido no assassinato de dois agentes da Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial.
Havia ainda os testemunhos não solicitados. Cartas de todas as partes do mundo – algumas simplesmente endereçadas ao “Papa João Paulo II – Céu” – de algum modo chegaram ao Escritório de Postulação. O postulador, o Monsenhor Slawomir Oder, um canonista polonês originário da Diocese de Torun, disse-me que muitas dessas cartas vinham de protestantes, de cristãos ortodoxos, de não-cristãos e até mesmo de não-crentes, cujas vidas, entretanto, haviam sido tocadas pela vida e pelo testemunho de Karol Wojtyla.
Milhares de benefícios concedidos através do que os escritores acreditam ser intercessões de João Paulo II também foram reportados; muitos envolviam graves enfermidades; mas, muito apropriadamente para um Papa pró-vida que ergueu a vocação matrimonial à condição de nobre chamado, outras envolviam casais que haviam concebido uma criança depois de anos de dificuldades. (E há quem goste de pensar que o filósofo e professor aposentado da Universidade Católica de Lublin dá risadas celestiais com tantos alunos pedindo por sua ajuda para passar em testes difíceis.)
Vieram então os críticos: a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, o grupo dos lefebvristas, enviou por sua própria iniciativa um denso dossiê acusando João Paulo de ter abandonado a noção de pecado pessoal em detrimento do “pecado social”, de ter pregado uma esperança terrena e não escatológica, de ter promovido o diálogo interreligioso.
O caso do Padre Marcial Maciel fundador dos Legionários de Cristo, não pode ser negado, foi presumivelmente tratado sob a rubrica de “questões especiais”. Qualquer conjectura de que o Papa supostamente teria sido cúmplice num acobertamento dos crimes de Maciel foi suficientemente resolvida - ou seja, foi refutada. Poder-se-ia sugerir, contudo, que um anúncio público da Santa Sé quanto a essa faceta da investigação da beatificação ajudaria a esclarecer a atmosfera que antecede a cerimônia de beatificação do 1º de Maio.
A cura de uma freira francesa que sofria de mal de Parkinson – que não poderia ser explicada de outra maneira – foi o milagre de confirmação, aceito pela Congregação para a Causa dos Santos e pelo Papa Bento, que abriu caminho para que se decretasse a beatificação. Mas num sentido mais amplo de “milagre”, o que lhe valeu a beatificação – e que, em última análise, lhe poderá render a canonização – está no testemunho de toda a sua vida. E o maior “milagre” que Karol Wojtyla realizou foi o de restaurar o senso de que o Cristianismo ainda era possível num mundo que relegava a certeza cristã às margens da história.
Em 1978, ninguém esperava que a figura que definiria o último quarto do século vinte seria um padre polonês, um bispo! O Cristianismo acabou sendo uma força de construção do mundo de acordo com os líderes de opinião da época; ele poderia ter resistido como um veículo de piedade pessoal, mas, se assim fosse, a certeza cristã não teria desempenhado nenhum papel na construção do século vinte e um. Ora, ainda nos primeiros meses desde sua eleição, João Paulo II demonstrou a capacidade dramática da certeza cristã em criar uma revolução da consciência que, por sua vez, criou uma nova e poderosa forma de política – a política que possivelmente levou às revoluções de 1989 e à libertação da Europa Central e Oriental.
Houve ainda seu poder evangelizador. João Paulo II mostrou um Catolicismo envolvente e interessante num mundo que imaginava que a humanidade havia “superado” sua necessidade de Deus, de Cristo e da Igreja. Em quase todas as partes do mundo, a pregação sem pretenso tom apologético do saudoso Papa de que Jesus Cristo é a resposta para a questão existencial de cada vida humana arrancou uma resposta positiva, e milhares de vidas foram transformadas como resultado. Não era de se supor que algo assim pudesse acontecer na modernidade tardia. Mas aconteceu, graças à pregação “milagrosa” de um evangelho de compaixão, mas um evangelho sem acomodação, que firmou compromisso com o mundo enquanto o desafiou a viver sua aspiração à liberdade de maneira mais nobre.
Houve também a doutrina social de João Paulo, que, novamente contra todas as expectativas, pôs a Igreja Católica no centro das conversações mundiais sobre política, economia e cultura pública do futuro pós-Comunista. Em 1978, quem poderia imaginar que as encíclicas sociais papais poderiam ser debatidas nas páginas do The Wall Street Journal e que um papa seria capaz de prender a atenção do mundo em duas dramáticas defesas da universalidade dos direitos humanos antes da Assembléia Geral das Nações Unidas? Ninguém poderia imaginá-lo, nem mesmo os cardeais que elegeram Karol Wojtyla como Papa. Mas aconteceu.
Como um filho do Concílio Vaticano II, João Paulo II criou um modelo de Catolicismo evangélico que fez a proposta cristã plausível, envolvente e atrativa. E não o fez diluindo as exigências do Evangelho, mas pregando a integralidade da verdade cristã e então incorporando esses ensinamentos à sua própria vida, sofrimento e morte. Seu Catolicismo evangélico demonstrou tanto a beleza do Cristianismo quanto sua importância para o futuro dos homens. Essa demonstração foi seu maior “milagre”, foi seu maior presente para a Igreja e para o mundo; e eis a razão pela qual a Igreja está correta em reconhecer suas virtudes heroicas, ao declarar que ele está entre os bem-aventurados.
George Weigel, publicado publicado no jornal semanal The Tablet.
Washington, 22 de Janeiro de 2011.
Tradução Voto Católico.
Tradução Voto Católico.