Ensinam os sociólogos que a família é a célula social; os juristas, que ela é uma instituição natural protegida pela ordem jurídica positiva; os teólogos, que ela é uma instituição divina. Tais significações se completam na síntese de um conceito: a família é a primeira das sociedades, sendo também fonte da vida e recinto sagrado de amor.
1.Célula social — A expressão é empregada por analogia metafórica. A célula é, no organismo, a última parcela de vida em que se pode decompor o todo orgânico. Constitui um centro relativamente autônomo de vida, mas, para subsistir, precisa receber energias vitais que circulam por todo o organismo. Estas energias, por sua vez, resultam do trabalho das células, que assimilam os elementos necessários para a subsistência do ser vivo. A família pode ser comparada a uma célula porque a sociedade é como que um grande organismo moral, sem chegar a formar uma substância, ao contrário do organismo biológico — e, portanto, sem unidade substancial, mas com unidade de ordem. A família assegura à sociedade a continuidade orgânica, pela perpetuação do gênero humano, e também a continuidade moral, pela educação da prole. A sociedade civil ou política (Civitas, Polis) é composta não de indivíduos soltos, mas de famílias e outros grupos intermediários, cujo conjunto é a sociedade global. Não há sociedade política que não proceda da família. Por vezes, de um tronco ancestral comum várias famílias se vão formando, como ocorre nas tribos primitivas e nas sociedades patriarcais. Outras vezes, famílias diversas se reúnem na mesma localidade e a comunidade de vizinhos forma uma sociedade maior, constituindo-se, assim, as aldeias, as cidades, os reinos e os impérios, num alargamento progressivo do núcleo inicial.
2.Instituição natural — A família é a unidade natural e simples desse núcleo. Unidade social é a família, e não o indivíduo saído da selva para formar, com outros indivíduos, a primeira sociedade por meio de um contrato. A família é uma instituição natural porque corresponde a uma inclinação natural do ser humano. É uma sociedade simples, pois não se pode decompor em outras menores. Constitui-se pelo casamento, cujo fim principal é a procriação. A sociedade conjugal e a sociedade de pais e filhos foram uma só comunidade. Além disso, a sociedade familiar é simples e uma como nenhuma sociedade pode ser, pois nela os “sócios” vivem não apenas associados, mas identificados por uma comunidade de vida tal que, mesmo biologicamente e sobretudo afetivamente, seus membros realizam a mais perfeita unidade social. Nessa comunhão de vida e de sentimentos, cabe naturalmente aos pais a educação dos filhos. Tem assim a família duas funções naturais: a função biológica (transmissão da vida) e a função pedagógica (educação). A estas, acrescentam-se a função econômica e a função política. Pela primeira, a família apresenta-se como unidade de produção e consumo. No regime artesanal e nos quadros da organização corporativa, sua importância era grande enquanto unidade de produção, aspecto este que entrou em declínio com o aparecimento da máquina, até se desvanecer quase por completo na sociedade industrial moderna. Continua, porém, a desempenhar papel primordial enquanto unidade de consumo. Quanto à função política da família, tem deixado de ser exercida desde que o individualismo liberal começou a desagregar as sociedades, preparando o caminho para a centralização estatal e o totalitarismo. Essa função política poderá consistir numa participação efetiva da família nos órgãos representativos, mediante, por exemplo, a instituição do voto familiar inserido na sistemática da representação dos grupos intermediários, em que a sociedade naturalmente se estrutura.
3.Instituição divina — Todos os povos, desde os mais primitivos, sempre reconheceram a sacralidade do matrimônio, expressa na lapidar definição de casamento formulada, no século III, pelo jurisconsulto romano Modestino: Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani juris communicatio (D. 23. 2. 1), o casamento é a união do homem e da mulher, num consórcio por toda a vida, com a comunicação do direito divino e humano. Procedendo de um acordo de vontades, o casamento não é, entretanto, simples contrato, pois os que se unem pelo vínculo matrimonial o fazem ordenados à realização de uma finalidade superior, que eles não podem alterar, vinda da própria natureza e, consequentemente, de Deus, autor da natureza. Daí a indissolubilidade do vínculo conjugal, necessária para a plena realização dos fins do casamento e imprescindível para o bem da prole. O homem é livre de abraçar ou não o estado matrimonial, mas nunca de querer o casamento sem ao mesmo tempo aceitar as condições e consequências determinadas pela ordem natural. Assim se há de entender a indissolubilidade matrimonial, e por isto, ao relacionar o casamento com a ideia de um “consórcio”, o jurisconsulto romano acrescentava logo: omnis vitae (de toda a vida). O que condiz com o sentido mais profundo do amor conjugal, que implica doação e dependência, estando o segredo da felicidade, no casamento, em abraçar livre e amorosamente essa dependência. Fruto do amor, a união conjugal é uma escola de sacrifício, mesmo porque o sacrifício é a prova do amor. O verdadeiro amor consiste no desprendimento de si mesmo e na entrega à pessoa amada, sem medir sacrifícios. O mesmo ocorre no caso do amor conjugal e no dos amores materno e paterno. Amor não se confunde com paixão animal, segundo pensam os que do prazer fazem a meta da vida. E se ele pode nascer da fogueira de uma paixão, nesse caso ou acaba por sublimar-se numa comunhão de almas e de vidas, ou nunca passará de expressão dum requintado egoísmo. Na definição de um pagão como Modestino já se acentua o caráter sagrado do matrimônio (divini et humani juris communicatio), sendo que o Cristianismo enobreceu o casamento fazendo dele um sacramento. O homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, são “dois numa só carne”, conforme a expressão do Evangelho de São Mateus (19, 6), reiterando o que está no Gênesis (2, 24). Pela fidelidade à graça sacramental, os cônjuges tornam-se um só coração e uma só alma, tendo por símbolo e modelo dessa união a de Cristo com a Igreja (capítulo 5º da Epístola de São Paulo aos Efésios). A “comunicação do direito divino e do direito humano” é o que vemos na instituição da união conjugal por Deus, ao criar o homem, e na sua elevação a sacramento da Nova Lei por Jesus Cristo. Se a família sempre teve um caráter religioso, manifestado entre os gregos e os romanos no culto dos lares e dos antepassados, depois da Redenção o ato constitutivo do matrimônio foi engrandecido pelo sacramento, de tal maneira que, nas perspectivas do direito cristão, não pode existir um sem o outro. Daí a expressão dos teólogos e canonistas para designar o vínculo matrimonial: contrato-sacramento. Note-se o traço de união, como a indicar que o sacramento não é um acréscimo, um elemento acidental que se justapõe ao contrato: ele afeta a essência mesma do contrato.
Instituição natural e divina, tendo caído em estado de degradação nas manifestações grosseiras da poligamia e da poliandria, foi a família restituída à sua dignidade nessa comunicação do divino e do humano: da parte de Deus, as graças dadas no sacramento; e da parte dos cônjuges, os sacrifícios oferecidos a Deus no cumprimento da missão que lhes compete. Mas a sacralidade do casamento e da família, reconhecida entre os primitivos, conservada na antiguidade e aprimorada com o Cristianismo, foi-se perdendo com o processo de secularização ou dessacralização das mentalidades, dos costumes e das instituições, a partir do outono da Idade Média — para empregar a expressão de Huizinga (1872-1946) — e do dealbar do Renascimento pagão. O humanismo renascentista deu origem a uma cosmovisão materialista da vida, e embora a sociedade conservasse ainda os princípios cristãos, estes iam sendo enfraquecidos na consciência dos homens pelo individualismo (religioso, econômico, político). Ao individualismo seguiu-se o coletivismo, aliás, sua continuação de certo modo lógica, fazendo prevalecer aquela cosmovisão materialista. A família foi atingida, no cerne, pelo divórcio, expressão do individualismo, reduzindo o casamento a um simples contrato dependente tão só da vontade autônoma dos cônjuges, desvinculada da submissão à lei divina e a uma ordem moral objetiva. Quanto ao coletivismo, absorvendo os indivíduos na coletividade estatal, fez desaparecer os restos da autonomia familiar, negando aos pais o direito à educação dos filhos, dando ao Estado o monopólio do ensino e chegando a atribuir-lhe a função de planejamento da natalidade. A legalização do aborto em países de tradição católica, tais como a França e a Itália, mostra até que ponto chegou o processo secularizador dissolvente dos valores básicos da ordem natural e da sociedade cristã.
Sendo a família a célula social, cumpre todavia notar que a célula não passa de uma parte do organismo vivo, enquanto a família subsiste por si, é um todo completo e não simples parte de um todo. Ela visa à perfeição integral do homem. Por isso mesmo, na sua autonomia, excede de muito a célula como centro de atividade biológica, daí resultando os direitos naturais da família em face do Estado. A sociedade doméstica ordena o homem para o bem de sua natureza de um modo muito mais completo que o Estado, enquanto a organização da sociedade política. Missão do Estado é proporcionar as condições externas para o bem temporal dos indivíduos e das famílias componentes da sociedade global. Deve garantir segurança a todos, suprir as deficiências dos particulares, remover os obstáculos à plena realização dos objetivos familiares, procurando preservar a moralidade pública, impedindo a utilização dos meios de comunicação (mídia) para propagar o vício e o crime, não permitindo a disseminação de ideologias desintegradoras da família e da ordem social. Cabe ainda ao Estado, no exercício de função supletiva, favorecer e estimular o estabelecimento de uma ordem econômica justa, que possibilite a todas as famílias um condigno padrão de vida.