No Correio Brasiliense de 22 de junho de 2010 apareceu uma crítica aos livros didáticos de Ensino Religioso nas escolas públicas, acusados de não promover a diversidade religiosa e de favorecer proselitismo. Isso seria resultado de um estudo recomendado pela Unesco à Universidade de Brasília e à organização não-governamental Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis).
A matéria critica todas as formas de Ensino Religioso, seja a puramente antropológica, como a confessional-plural. Todas são acusadas de ser proselitistas e intolerantes. A matéria em si é muito frágil, pois não apresenta os dados da pesquisa, mas apenas as opiniões e afirmações ideológicas. Carece em documentação e chega a ser ridícula quando fala que, entre os líderes religiosos, Jesus aparece vinte vezes mais que Martinho Lutero. O próprio Lutero ficaria indignado se não fosse assim.
E quando se apresentam os dados, se fala em Hegemonia Cristã, que ocupa 65% do conteúdo abordado, contra 3% de componentes ligados a religiões espíritas e afro-brasileiras. Esses são, simplesmente, os dados do IBGE que apresentam o cristianismo como religião majoritária no país. Se os livros são de religião católica e protestante, logicamente devem aprofundar a religião cristã, mesmo apresentando outras religiões. Mas a matéria, mesmo na sua fraqueza, revela a sua tese de fundo, que é clara: o Ensino Religioso não deve existir de forma alguma. Essa visão fortemente ideológica é própria de grupos ateus e radicais que fizeram desta batalha uma bandeira para a total secularização da sociedade.
A pluralidade e a crítica ao proselitismo, coisas em si muito justas, são apenas a cobertura para outra forma de proselitismo que quer a ausência de qualquer religião na vida da sociedade. Trata-se de uma verdadeira intolerância contra o direito de manifestar-se publicamente de qualquer forma de identidade religiosa. Essa é a atitude típica de regimes totalitários que restringem aos templos e às sacristias a manifestação da fé. É também exatamente o contrário da “laicidade” da qual fala Nicolas Sarkozy, presidente da República da França, nação que sempre foi “porta-bandeira” do princípio da laicidade do Estado. “Desejo o advento de uma laicidade positiva, ou seja, uma laicidade que, preservando a liberdade de pensamento, a de crer e não crer, não veja as religiões como um perigo, mas, pelo contrário, como um trunfo. Trata-se de procurar o diálogo com as grandes religiões e ter por princípio facilitar a vida quotidiana das grandes correntes espirituais, ao invés de procurar complicá-las.” (Discurso pronunciado em Roma, em 4 de janeiro de 2008).
Isso está em sintonia com quanto afirmam a Constituição Federal Brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases e o recente acordo entre Brasil e Santa Sé. Este último ato jurídico do governo brasileiro reconhece o Ensino Religioso pluri-confessional e abre o caminho para convenções entre as várias religiões e o Estado Brasileiro, a exemplo de quanto acontece em outros países. O verdadeiro pluralismo comporta a convivência, o respeito e o diálogo entre diferentes visões da vida, não o esvaziamento das diversas identidades culturais e religiosas.
O Estado é laico porque não tem uma religião própria, mas também não é um Estado ateu ou indiferente; sua função é a de respeitar as varias religiões presentes no país. Na Lei do Estado do Rio de Janeiro que garante o Ensino Religioso (Lei 3.459), de fato se dá espaço a todas as religiões, segundo as proporções definidas no ato de matrícula dos alunos, e permitindo a valorização das várias identidades culturais e religiosas presentes na sociedade. Os livros de ensino da religião católica publicados pela editora “Vozes” para alunos do estado do Rio de Janeiro oferecem uma apresentação de várias religiões, com textos escritos pelos representantes de diferentes credos como o Protestantismo, a Ortodoxia, o Judaísmo, o Budismo e as religiões afro-brasileiras.
A polêmica sobre os livros de textos de Ensino Religioso nas escolas públicas, que são diferentes dos livros da Catequese, teria muito a ganhar se assumisse decididamente a bandeira do pluralismo religioso e abandonasse um sufocante ateísmo militante. Ganharia muito respiro a própria reflexão racional segundo um sadio diálogo entre fé e razão como demonstra a reflexão crítica desenvolvida por vários intelectuais, como o filósofo alemão Jürgen Habermas e o crítico inglês Terry Eagleton.
A razão não pode ser isolada de outros fatores e, não é um esquema fechado, mas, se quer ser coerente, deve admitir a possibilidade de algo que lhe escapa; algo maior que ela mesma e que incentiva constantemente a própria busca. Dizia Einstein: “Quem não admite o mistério insondável não pode ser nem mesmo um cientista” (“Como vejo o mundo”, Nova Fronteira, 1981, p.23).
Do diálogo entre a razão e a fé, na sua pluralidade de formas, a sociedade e a própria escola podem ser enriquecidas e iluminadas, comunicando ao nosso tempo um suplemento de esperança.
Dom Filippo Santoro é Bispo da Diocese de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Petrópolis, 18 de setembro de 2010.