Damos início hoje à publicação da série de artigos Católicos e Política, da autoria do padre espanhol José María Iraburu Larreta, diretor da Fundação Gratis Date. A série é composta por 30 artigos ao todo, que aparecerão no formato duma coluna semanal, toda sexta feira. Pretendemos oferecer ao laicato brasileiro mais um material de referência para a reta formação no campo da política, conscientes de que tal material não oferece soluções específicas, mas nos leva a crer que temos de nos preparar e agir, mesmo que a situação esteja gravíssima. Lembramos, com o grande pensador católico Jean Ousset, em sua obra Para que Ele Reine, que “para devolver a um laicato cristão seu justo poder cristão ou temporal não é necessário crer que enquanto não se tome o governo devemos deixar tudo abandonado”. Por essa razão, esperamos que esse precioso material que estamos disponibilizando injete um ânimo nos católicos brasileiros, para que estes possam formar grupos de estudo e de atuação, sempre pautados pelo que ensina a Santa Igreja a respeito do assunto em questão.
I: REFORMA OU APOSTASIA
A atividade política é nobilíssima. Dentre todas as atividades seculares, a função política é uma das mais elevadas, pois é a que está mais diretamente ligada ao bem comum dos homens. Assim o considerou sempre o cristianismo, como podemos comprovar por meio do ensinamento de Santo Tomás de Aquino. E o Concílio Vaticano II, com especial insistência, exortou os cristãos a trabalharem “pela inspiração cristã da ordem temporal” (Constituição dogmática Lumen gentium 31b; 36c; AA 2b, 4e, 5, 7de, 19a, 29g, 31d; decreto Ad gentes divinitus 15g, etc.). Paulo VI, na encíclica Populorum progressio (1967), realizava uma chamada urgente:
“Exortamos primeiramente todos os nossos filhos. Nos países em via de desenvolvimento, assim como em todos os outros, os leigos devem assumir como tarefa própria a renovação da ordem temporal [...] São necessárias modificações e são indispensáveis reformas profundas: devem eles esforçar-se decididamente por insuflar nestas o espírito evangélico. Aos nossos filhos católicos que pertencem aos países mais favorecidos, pedimos o contributo da sua competência e da sua participação ativa nas organizações oficiais ou privadas, civis ou religiosas, empenhadas em vencer as dificuldades das nações em fase de desenvolvimento” (81).
Todos os papas dos últimos tempos, como Leão XIII, São Pio X, Pio XI e Pio XII inculcaram com grande força nos católicos seu dever de colaborar com o bem comum de seu povo, valorizando em alto grau a atividade política e social e chamando a atenção para sua necessidade.
Os maiores males do mundo atual foram causados principalmente pela atividade política. Essa afirmação não é contraditória com a anteriormente estabelecida, mas antes a confirma: corruptio optimi pessima (a corrupção do melhor é o pior). A perversão da política moderna é a principal causa da degradação social da cultura e das leis, dos costumes, da educação e da família, da filosofia e da arte. Sem a atividade perversa dos políticos, o povo comum jamais teria chegado, por meio de suas próprias tradições e inclinações, a legalizar a eutanásia, a reconhecer o aborto como um “direito” ou a considerar como “matrimônio” a união de homossexuais. Mais ainda, a apostasia das nações ocidentais de anterior filiação católica, ainda que se deva principalmente a causas internas à vida da Igreja — heresias, infidelidades, aversão à Cruz, mundanização crescente, etc. —, teve nas coordenadas políticas dos últimos tempos um de seus fatores mais decisivos.
Atualmente, é muito escasso o influxo dos cristãos na vida política das nações ocidentais, todas elas de antiga filiação cristã. São muitos os católicos que veem com perplexidade, com tristeza e, às vezes, com ressentimento em relação à Hierarquia pastoral, como a presença dos leigos na res publica nunca foi tão valorizada e exortada na Igreja como em nosso tempo, e nunca foi tão mínima e ineficaz como agora. Atualmente, não poucas nações de maioria cristã, desde mais de meio século, têm avançado em direção aos piores extremos do mal, conduzidas por uma minoria política perversa e eficacíssima. Essa minoria, numa ou noutra questão, com a cumplicidade ativa ou passiva de políticos cristãos, sempre tem imposto seus objetivos e leis criminosos, como se a grande maioria católica não existisse e (pasmem!) apoiando-se principalmente em seus votos! “Nada é tão ruim que não possa piorar”... Assim, conseguiu arrancar as raízes cristãs de muitas nações, tem ignorado e caluniado sua verdadeira história e encerrou o pensamento e a vida moral dessas sociedades em caminhos cada vez piores e mais constritivos.
Em outro lugar, eu contemplava a história da humanidade como uma batalha incessante de Cristo e a Igreja contra Satanás e “os dominadores deste mundo tenebroso” (Carta de São Paulo aos Efésios, 6, 12), a qual certamente terminará com a vitória final de Cristo (20-21). Pois bem, se nos ativermos ao critério fundamental de discernimento que Cristo nos ensina — “por seus frutos os conhecereis” —, parece evidente que o pensamento e a atividade do povo católico na vida política precisam hoje de uma reforma profunda, tanto no critério como na ação, pois de outro modo seguiria crescendo a apostasia das nações.
Reforma ou apostasia. Seria absurdo esperar que [esta pobre coluna semanal] ofereceria soluções concretas a uma questão tão enorme e complexa, em que membros da Igreja muito valiosos pensam de modos tão diversos. Meu intento se limita a assinalar erros e deficiências patentes, e a recordar os grandes princípios católicos sobre a política, sem pretensão alguma de promover soluções concretas de validez universal. Deste modo, as poucas forças [desta coluna] se unem a outras forças maiores que atualmente na Igreja estão clamando reforma!, no que tange à inserção dos católicos na vida política.
Não estamos bem, quer dizer, estamos mal. É urgente para a Igreja discernir em tudo, e concretamente na ação dos cristãos na vida política: verificar se os pensamentos e caminhos que estão sendo seguidos são de Deus ou dos homens (Livro de Isaías, 55, 8-9). Na história cristã, não poucas vezes um Sínodo ou Concílio se reuniu para superar um grave mal da Igreja, respondendo a um clamor reformationis, e sem conhecer de antemão quais deveriam ser os modos concretos mais convenientes para realizar essas reformas necessárias. É justamente para isso que se reúnem os sucessores dos Apóstolos em seu intento reformador, para conseguir luz e força do Espírito Santo, o único que pode “renovar a face da terra”. Reforma ou apostasia.
Ninguém deve depositar sua esperança principalmente na política. Fazê-lo seria um pelagianismo péssimo. A ação política, de fato, é frequentemente a causa principal dos males que atingem o povo. Naturalmente, ainda pior seria uma anarquia total. Mas o pecado original, que deteriora tanto o ser como a ação dos humanos, age com especial força nos políticos, nos “poderosos” que governam as coisas deste mundo. Isto será tratado em outro artigo mais detalhadamente. Mas por ora digamos, acercando-nos do campo cristão, que aqueles políticos que, sem fazer referência a Deus, prometem grandes bens ao povo, e do mesmo modo aqueles que depositam sua esperança em certos homens, partidos ou grupos políticos, são infiéis à esperança cristã. São mais ou menos pelagianos.
“Assim disse Javé: ‘Maldito o homem que confia no homem, que faz da carne a sua força. Mas afasta seu coração do Senhor. Ele é como cardo na estepe: não vê quando vem a felicidade, habita os lugares secos no deserto, terra salgada, onde ninguém mora. Bendito o homem que se fia no Senhor, e Nele deposita sua esperança’” (Livro de Jeremias, 17, 5-7). Certa literatura pós-conciliar, sobretudo durante os anos setentas e oitentas, sem referência alguma à necessária ajuda de nosso Salvador Jesus Cristo, elogiava a ação política na vida dos cristãos ou louvava os poderes salvíficos de certos partidos ou movimentos de um modo evidentemente pelagiano. Revistas e panfletos, grandes cenários espetaculares, formidáveis megafonias e meios audiovisuais, slogans messiânicos, "votar por fulano = votar na liberdade e no progresso", abundância de flores e pombos soltos para voar, todos esses entusiasmos coletivos organizados são ridículos, e nenhum cristão deve participar com fé e esperança em tais atos de culto.
É certo que a Providência de Deus misericordioso às vezes suscita num povo uma vida política nobre e benéfica: o rei São Fernando, Isabel, a Católica, Gabriel García Moreno. Mas só os governantes santos, dóceis ao Espírito Santo e completamente livres dos condicionamentos negativos do mundo secular, são capazes, por meio da graça, de levar adiante um governo político santo e santificante. E santos como esses costumam ser poucos na história.
O número dos néscios é infinito. É duro dizê-lo, mas é verdade. Hoje, talvez por causa da soberba da espécie humana, por causa do democratismo adulador do povo, que busca seus votos, ou pelo que quer que seja, essa verdade costuma manter-se silenciada. Porém não por isso deixa de ser verdadeira. E são muitos os que a conhecem, ainda que a silenciem. A própria razão natural a descobre facilmente. Basta a abrir o jornal de cada dia ou folhear as páginas de qualquer livro de história. Mas essa verdade está confirmada, além disso, pela própria Palavra divina: “o número dos néscios é infinito” (Livro de Eclesiastes, 1, 15); “larga é a porta, e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos são os que entram por ela” (Evangelho de São Mateus, 7, 13). Os autores espirituais, como Kempis, sempre o disseram: “muitos escutam o mundo de preferência a Deus; mais facilmente seguem os apetites da carne que o beneplácito divino” (Imitação de Cristo, III, 3, 3).
O próprio Santo Tomás, tão bondoso e sereno, assinala a condição defeituosa do gênero humano como algo excepcional dentro da harmonia geral do cosmos: “só no homem parece dar-se o caso de que o mal seja o mais frequente (in solum autem hominibus malum videtur esse ut in pluribus); porque se recordarmos que o bem do homem enquanto tal não é o bem do sentido, mas o bem da razão, temos de reconhecer também que a maioria dos homens se guia pelos sentidos, e não pela razão” (Summa Theologiæ, I, 49, 3 ad5m). Essa é a realidade, e por isso “os vícios se encontram na maioria dos homens” (I-II, 71, 2 præt.3); e com farta frequência, nos políticos. E tudo isso tem consequências nefastas para a vida política da sociedade humana, pois “a sensualidade (fomes) não inclina ao bem comum, mas ao bem particular” (I-II, 91, 6 præt.3).
O império da mediocridade provoca grandes males na vida política. Os homens “muito bons”, assim como os “muito maus”, são pouquíssimos. O que abunda e superabunda é a mediocridade. A própria palavra nos faz ver que corresponde ao nível médio dos conjuntos humanos. No entanto, a mediocridade intelectual, moral e operativa num político, num governante, é uma má mediocridade, maligna, cuja expressão política, qualquer que seja o regime, há de causar grandes males. Um neurocirurgião, dada a extrema delicadeza de sua ação, há de ser bom ou muito bom, porque se é medíocre em seus conhecimentos e habilidades, ou se é mau, é muito mau e faz estragos. Deve-se dizer o mesmo dos políticos, principais responsáveis pelo bem comum da sociedade, entre os quais obviamente predomina a mediocridade.
Noutra ordem de coisas, mas em clara analogia doutrinal, São João da Cruz põe-se em guarda a respeito dos grandes males que causam os diretores espirituais incompetentes. Não sendo idôneos, atrevem-se a dirigir as pessoas. E lhes recorda, com grande severidade, que “aquele que erra temerariamente, estando obrigado a acertar, como cada um que está em seu ofício, não passará sem castigo, segundo o dano que causou” (Llama de amor viva, 3, 56). São cegos que guiam outros cegos e que com estes caem na cova (Evangelho de São Mateus, 15, 14).
Os homens estão muito deteriorados, e os políticos também, ou mais. Quero observar, de passagem, que falar mal do homem é permitido, e inclusive está em voga na cultura moderna, no cinema e na literatura, na filosofia e na psicanálise, na pintura ou no teatro. É até mesmo uma nota progressista. Todavia, a teologia cristã está proibida de falar mal da espécie humana e da absoluta necessidade que esta tem da graça de Cristo para se sanar e alcançar a salvação; quer dizer, todos podem falar mal do homem, menos os teólogos.
A razão dessa situação absurda está em que a teologia vê a tremenda defeituosidade do ser humano em termos de pecado e de possível castigo eterno e em referência à força salvadora que transborda da graça de Cristo. E o pensamento mundano não quer reconhecer o mal congênito do homem, nem, menos ainda, quer saber nada a respeito de uma possível perdição eterna; e tampouco admite a necessidade de uma salvação por meio da graça, por meio do dom sobre-humano e gratuito de Deus. Isso lhe parece humilhante.
José María Iraburu.
Pamplona, Espanha.
A ênfase no texto nas frases com negritas ou itálicas são do próprio autor.
A ênfase no texto nas frases com negritas ou itálicas são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira "Virtudes y condiciones para o católico na política".